Quando criança, sempre adorei a chuva. Achava sensacional aquele som da água caindo no telhado. Depois, parando para pensar sobre esse fato, cheguei descobri que na verdade eu gostava mesmo era do conforto e sentimento de proteção que aquela situação me proporcionava. Não podia ser diferente, pois eu estava dentro de casa. Estava seguro.
Depois que você envelhece, acaba entendendo que nem tudo o que te faz bem é algo realmente bom. Aquilo que parece bom para mim pode ser um pesadelo para o outro. Entendem? E a partir daí você começa a refletir sobre as coisas.
E “Que Deus te Abandone” é exatamente isso. Uma obra de reflexão.
Que Deus Te Abandone
Roteiro – André Diniz
Arte – Tainan Rocha
Editora – Sesi-SP
Páginas – 42
Quem acompanha o Drunkwookie sabe que eu sou apaixonado por Quadrinhos e o quanto eu gosto de ler. As leituras vão desde coloridas sagas com clones, passando por tramas com, no mínimo, três linhas temporais vigentes ou até mesmo arcos inteiros com ninjas cibernéticos e magos místicos aliado à equipes de super-seres.
É claro que na maioria dessas situações que acabo de citar, eu não exijo (e nem espero) um grande subtexto miraculoso capaz de me fazer mudar o modo como vejo o mundo. É apenas entretenimento. E não podia ser diferente, pois você percebe isso ao ver na capa da HQ um grupo de homens e mulheres usando collant.
Entretanto, há quadrinhos que são diferentes.
E aqui está um deles.
André Diniz e Tainan Rocha usaram um veículo de entretenimento, conhecido do grande público (Sim, o quadrinho) para trazer alguns assuntos que geram uma reflexão. Reflexão essa que vem durante e perdura após a leitura, conforme vou mostrar.
A arte e a narrativa. A chuva e os personagens.
A arte suja de Tainan Rocha está impregnada em cada uma das 42 páginas de história. Esse estilo parece ter sido criado exclusivamente para o roteiro de André Diniz. Juntos, texto e desenho é capaz de nos entregar uma trama surpreendente, através de uma narrativa rápida, concisa e suficientemente profunda.
Conhecemos rapidamente os personagens e logo nos conectamos à eles e entendemos o dia-a-dia daquelas pessoas.
É algo bem rápido mesmo, assim como as nuvens negras que se formam no final da tarde de um dia de verão.
O vilão dessa HQ não lança poderes cinéticos pela palma das mãos, nem controla mentes apenas com o olhar. Infelizmente, esse é um vilão bem real.
Quando o morro desaba perante a força da chuva e a falta de infraestrutura do local, a história se concentra em uma luta pela sobrevivência debaixo de terra e acima dela. Lama, água, gritos e pavor.
Até onde você arriscaria sua vida, pela vida de alguém que não vale nada?
Acho que essa é a primeira reflexão a se fazer quando vemos Bárbara tentando ajudar Nonato.
A arte de Tainan contribui para o cenário catastrófico e você se sente debaixo d’água.
O momento que mais gosto é a página dupla, perto do final d HQ (página 36-37). O Sol brilhando e cada raio defini um quadro na narrativa de André Diniz. É simplesmente fantástico.
Confesso que gostaria de ver essa HQ colorida. Algo na mesma pegada que vemos na capa. Uma paleta reduzida, quem sabe igual àquela vista em Gavião Arqueiro: Minha Vida Como Uma Arma de Matt Fraction e David Aja. Acho que funcionaria muito bem.
Conclusão
“Que Deus Te Abandone” pontua bem aquele sentimento que descrevi no início do post, sobre gostar ou não gostar da chuva. A questão é: Você pode?
Poder gostar do barulho da chuva ou não poder suportar o som dos primeiros pingos de uma tempestade?
Tudo depende de onde você está, qual posição você ocupa nessa sociedade. Infelizmente.
E se você espera que a atitude altruísta de Bárbara surtirá efeitos positivos em todos ao seu redor, é capaz de você se decepcionar.
A verdade nua e crua do texto de Diniz, é: As pessoas são o que são. As suas atitudes talvez não mudarão as atitudes dos outros.
Suas atitudes dependem do que você quer para você mesmo, e só.
Uma verdade difícil de digerir ao fechar a edição. Por isso eu disse que a reflexão perduraria, mesmo após terminar a leitura.
Bem… não falarei mais para não estragar a surpresa da leitura. Há muito o que ser absorvido em “Que Deus Te abandone“. Há muitas zonas cinzas (e não estou falando da arte) onde os personagens transitam, e isso é muito interessante observar.
Vale muito a pena ler!
E que venham mais Quadrinhos de Tainan Rocha e André Diniz.Eu como fã e colecionador, só tenho à agradecer.
Pelo título a trama tem conteúdo antiteísta ou não é esse o ponto do mesmo? No mais, interessei, porém se for antiteísta acaba o tesão sobre. Ultimamente só isso que vem do mundo da cultura pop.
Não é antiteista não. Só o titulo leva a crer. A HQ é só realista.